sexta-feira, 15 de julho de 2011

O glorioso afogamento da aranha

sentado ignoro
a chávena de café
ainda por revelar
uma perna de aranha

o jornal
continua dobrado
ainda por revelar
os cadáveres
da noite anterior

as mesas em redor
revelam uma civilização
de almas oxidadas

o habitual
cheiro a café
e o invasivo
fumo de cigarro
abrem o ritual:

15 minutos
de reflexão automática

em breve
regressaremos ao asfalto:
300 quilómetros
de cobra cinzenta

entretanto
os meus olhos gastos
apreciam
outros olhos
igualmente gastos

perdidos
entre fumos de cigarro
e outros indesejáveis odores
de presença humana

reclamações absurdas
parecem fazer parte
deste ritual alheio

gordos sebentos
inarticulados seres
semiconscientes das suas misérias
insuficientemente satisfeitos
com a submissão dos empregados de mesa

gado
de almas oxidadas
que donos de nada
julgam-se temporariamente donos
de outras almas igualmente oxidadas

e isto repete-se
em cada paragem na auto-estrada

pelas mesas em redor
uma abundância de olhos gastos
revelando cataratas de temores agendados

entretanto
eu sei que faço parte
de toda esta suculência

algures no passado
um passo mais à esquerda
ou à direita
trouxe-me até aqui

e agora
só me resta apreciar

talvez procure algo
neste mar de fumos e odores

talvez, quem sabe...

talvez
todo este empenho
em observar os arredores
e ver o filme já visto
me faça ignorar
o nunca
ou insuficientemente visto

e se por um
ou outro momento
me libertasse
de tal vício voyeurista
certamente testemunharia
outros mundos mais intrigantes ainda
como o da aranha em toda a sua dignidade
caminhando o percurso da Morte

isto é uma daquelas lições
que pelos vistos nunca aprenderei

assim seja!

há muito asfalto a percorrer

e em cada paragem
ver o já visto
como novo ou mais intrigante ainda
é um dos rituais
que para sempre me glorificará a jornada

sempre
e para sempre
desde que hajam asfalto
café fumo de cigarro
e aranhas dignas de entreter
os meus 15 minutos.


(Primošten, 15 de Julho de 2011)

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